Uma área de 145 mil hectares, tamanho similar ao do município de São Paulo, está no centro de um imbróglio envolvendo a geração de "tokens de carbono" de forma irregular na Amazônia. A propriedade, a Fazenda Floresta Amazônica, em Apuí (AM), tem 68% de seu território sobreposto ao Projeto de Assentamento (PAE) Aripuanã-Guariba.
As empresas envolvidas no projeto "Fazenda Floresta Amazônica" são a Reag, uma das maiores gestoras do país, a Greener, investida da Reag Investimentos e sediada na Suíça, e a Pachamama, do ator Bruno Gagliasso e seus sócios João Marcello Gomes Pinto e Rodrigo Rivellino. O proprietário da terra é Marco Antonio de Melo. Procurados inicialmente em outubro, os envolvidos disseram que só souberam que o imóvel tem sobreposição com o assentamento após contato da reportagem.
A informação a respeito da sobreposição — que indica que a maior parte da área da fazenda está dentro do assentamento — é do MapBiomas, que cruzou os dados públicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) com os três Cadastros Ambientais Rurais (CARs) já realizados do imóvel, todos cancelados por decisão administrativa do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam).
Em julho de 2024, a fazenda teve sua matrícula bloqueada cautelarmente pela Corregedoria de Justiça do Estado do Amazonas. A decisão, que abrange todas as propriedades com mais de 50 mil hectares em Apuí (AM), foi tomada após a Operação "Greenwashing", da Polícia Federal, revelar um esquema de fraude com créditos de carbono em outras áreas próximas, levantando suspeitas sobre mais irregularidades na região.
Entenda o caso
Em investigação à parte, o Incra descobriu indícios de grilagem especificamente na Fazenda Floresta Amazônica e recomendou em outubro à Procuradoria Federal Especializada o cancelamento definitivo da matrícula — registro em cartório que descreve a localização e o histórico do imóvel. O documento foi enviado com exclusividade à reportagem.
Quando a área foi arrecadada pelo Incra, nos anos 1980, o órgão de terras do Amazonas informou que não havia títulos na região. Um assentamento só é criado após a desapropriação de todos os imóveis regularmente registrados — como não havia títulos na área, não foi necessária nenhuma desapropriação.
Incra aponta irregularidade fundiária da Fazenda Floresta Amazônica em documento obtido com exclusividade pela Globo Rural — Foto: Incra/ documento obtido com exclusividade pela Globo Rural
A homologação do assentamento foi oficializada em 2005, quatro anos antes de o imóvel ser adquirido pelo produtor rural Marco Antonio de Melo.
Pelo fato de o assentamento ser um bem da União, sua ocupação sem o consentimento do Incra é vedada. Questionada sobre o caso, a autarquia afirmou que somente os assentados podem explorar os recursos locais e que não há registro de "qualquer pedido, comunicação ou aviso que trate de projeto de carbono na Fazenda Floresta Amazônica".
Entre os fatores listados pelo Incra, em laudo obtido pela reportagem, o instituto informa que a matrícula é originada de uma "escritura particular" de 1841 e "trata-se, portanto, de uma transferência entre pessoas privadas sem a participação do poder público como emissor de título idôneo". A escritura seria, inclusive, anterior à Lei de Terras de 1850, que estabeleceu um ordenamento jurídico sobre a transferência de terras públicas para privados.
Incra pede cancelamento definitivo da matrícula da Fazenda Floresta Amazônica — Foto: Incra/ documento obtido com exclusividade pela Globo Rural
Além disso, a primeira negociação registrada na matrícula é de 1982, posterior à lei 6015/1973, que obriga que o destaque do patrimônio público para o privado seja feito "a partir de um título emitido pelo poder público, quando somente a partir daí podem ocorrer negócios privados por escrituras privadas", disse o Incra.
"Outros negócios jurídicos seguiram, contudo passaram a ser irrelevantes. Os fortes indícios de fraudes fulminam qualquer pretensão do restante da cadeia, ainda que as outras escrituras sejam válidas", continuou o Incra.
Outro indício de fraude citado no laudo é que a transição da matrícula, de 1963, descreve que as terras pertencem a Apuí, município criado apenas em 1987.
O que dizem os envolvidos?
Procurado, o fazendeiro Melo disse por telefone à reportagem que investigou a cadeia dominal da propriedade antes de comprá-la e negou haver assentados na área. "Nunca teve assentamento, nunca vi ninguém lá", afirmou. Quando homologou a área, o Incra reconhecia 46 famílias no perímetro do assentamento.
Questionado sobre os apontamentos do instituto, Melo disse que acredita terem ocorrido "erros de digitação" nos registros, como a citação a Apuí na transcrição anterior à criação do próprio município, de 1963. O outro erro, segundo ele, seria o registro de duas origens com numerações distintas na matrícula atual do imóvel: a transcrição 348 do livro 4-A, que ele afirma ser a correta, e a matrícula 425 do livro 2-B, que ele diz ser fruto de erro de digitação.
Ele ainda afirmou que não confia no Incra. "Não querem que áreas particulares fiquem lá. Não posso ser queimado por erro de funcionário do Incra", disse. De acordo com Melo, seu advogado está em contato com a Corregedoria da Justiça amazonense para apresentar um "dossiê" com os documentos da área. Os arquivos foram enviados à reportagem.
Em fevereiro de 2023, uma "análise de risco" (legal opinion) produzida pelo Levy Advogados para o projeto ambiental recomendava aos envolvidos que realizassem um georreferenciamento (descrição dos limites e confrontações da propriedade) "para evitar eventual sobreposição de áreas". O Levy Advogados foi contratado pela consultoria Sallus, registrada em nome de um sócio da Reag, Lars Knorr.
A análise foi encaminhada à reportagem por Melo, que disse ter sido informado da sobreposição com o assentamento apenas após contato da Globo Rural.
Posteriormente, em junho de 2023, um relatório produzido pela KPMG a respeito do projeto ambiental na Fazenda Floresta Amazônica também apontou que havia "sobreposição de outras áreas cadastradas" no Incra, sem especificar quais.
No relatório, enviado à reportagem por Greener e Pachamama, a KPMG recomendou a "necessidade de averbação da planta georreferenciada às certidões/escrituras do imóvel perante o Incra. Uma vez as coordenadas cadastradas, e a averbação requerida, cabe ao próprio Incra retificar sua base de dados".
Relatório produzido pela KPMG em abril de 2023 mostra que envolvidos no projeto tinham ciência da sobreposição com terras do Incra — Foto: Documento enviado à reportagem pela Pachamama e pela Greener Tokens
O georreferenciamento da propriedade só foi feito por Marco Antonio de Melo em agosto de 2024. Segundo ele, seria um passo "para começar o projeto".
Na primeira abordagem da reportagem, o produtor disse que seu contato direto com as empresas do projeto ambiental era José Antonio Bittencourt, sócio-fundador da Greener, e que já havia conversado com ele antes sobre a regularização fundiária do imóvel.
Procurado, Bittencourt afirmou que só soube a respeito da sobreposição da propriedade com o assentamento no dia 11 de novembro, um dia após o primeiro contato da reportagem com Melo. Em sua resposta, Bittencourt também disse que "os documentos fundiários foram objeto de avaliação e parecer jurídico pelo escritório Levy Advogados". Trata-se do parecer que recomendou a realização de georreferenciamento em fevereiro de 2023.
Bittencourt disse que assim que "houve questionamentos [da reportagem] sobre suposta inconsistência na questão fundiária", informou "todas as partes relacionadas" também no dia 11 de novembro. Ele afirmou que havia sido o responsável por "aproximar as partes [proprietário e empresas] e auxiliar na relação entre todos".
Procurada pela reportagem no mesmo dia, a Greener disse inicialmente que "não tem relação direta com o proprietário da área, a quem compete responder pelas questões fundiárias".
Dois dias depois, a Greener enviou outro posicionamento à reportagem afirmando que, "imediatamente ao recebimento dos questionamentos por este órgão de imprensa, fizemos contato com o proprietário para averiguar a informação". Indagada se Bittencourt comunicou aos sócios da Greener sobre as conversas com Melo, a empresa não respondeu.
A Greener disse ainda que, após consultar especialista na área fundiária, teve a informação de que a matrícula é "válida", e que a sobreposição "não é elemento para conclusão definitiva da existência de irregularidade fundiária na propriedade e inconstância do projeto".
Procurada para comentar o imbróglio a respeito da geração e venda dos tokens da Greener, a assessoria de Bruno Gagliasso informou que a Pachamama é quem responde pela questão.
Em nota, a Pachamama disse que "recebeu com surpresa os questionamentos apresentados. Assim que tomamos conhecimento desses pontos, notificamos a Greener, responsável pelo desenvolvimento dos projetos ambientais e pela geração dos créditos de sustentabilidade tokenizados, assim como a KPMG, que foi a responsável pela auditoria completa de todo o processo".
Além disso, disse que "realizou uma análise criteriosa dos documentos apresentados, incluindo todos os relatórios e certificações fornecidos pela empresa de auditoria, que atestaram a regularidade da atuação e das operações na área mencionada, frisando que o direito de propriedade da terra estava comprovado".
Segundo Gomes Pinto, cofundador da Pachamama, a empresa teve acesso ao relatório da KPMG. "Na nossa leitura, o direito de terra da propriedade estava comprovado e que tinha uma retificação de sobreposição que caberia ao Incra fazer. A área de sobreposição sinalizada no relatório era muito pequena. A informação de que seria uma sobreposição de 68% é completamente nova para nós".
A Reag, por sua vez, afirmou em nota que "todo o processo é submetido a auditorias rigorosas". "Informamos que o corpo técnico jurídico está acompanhando a questão", acrescentou.
Globo Rural